sábado, 9 de maio de 2009

O que são aplausos...

As lembranças se cruzavam e atordoavam seus pensamentos com violência. As imagens de velhos tempos passavam a milésimos de segundo em sequência na sua cabeça e sua vontade era de retomar todos aqueles atos inconsequentes como se nada pudesse ferí-la; não mais do que já estava.

Se sentia realizada, vitoriosa, e ao mesmo tempo uma perdedora covarde sem coragem para prosseguir. Já estava enjoada de ver os seus erros se solucionarem corriqueiramente, e a esperança que ainda existia devido a esta circunstância só a fazia sofrer mais e mais.

Não queria pensar no amanhã, não queria ter expectativas pois sentia que sabia que tudo podia - ainda - ser diferente. Precisava gritar muito alto para que até sua alma a ouvisse e devido a isto esperava aplausos.

Faltava-lhe no entanto a compreensão de que aplausos não lhe eram necessários, pois o fato que estava em jogo era a sua felicidade extrema, a sua entrega como ser humano àquilo que acreditava ser o seu destino, o seu caminho.

A gratificação de viver é sentir cada instante da sua vida, cada minuto, cada ato, cada palavra pensada ou dita. A realização extrema está em absorver toda a energia das situações que vivemos, no momento de sua concretização, e não no amanhã do feito. Paremos todos de refletir as bonanças passadas, e de planejar as futuras. Não procuremos a felicidade com tanta intensidade que esqueçamos de sermos felizes: vivamos, todos os instantes, e por sí só únicos e especiais, e o amanhã se fará em plena glória, pois será apenas fruto do passado intensamente vivido.

Monet



Antes de me formar tive professores maravilhosos; cada um era dono de uma peculiaridade que sempre me encantava. Homens são tão promíscuos as vezes, que sempre me vi na posição de evitar quaisquer catástrofes, e o fiz muito bem várias vezes.

Enquanto permeavam os assuntos científicos, deu-se em artes plásticas. Entre uma escola e outra, nos direcionamos a Monet. O único pintor que pelo qual ele parecia ter realmente gosto. Sem julgar mentalmente o fato, comentei então que na minha coleção de réplicas havia uma de Monet, foi então que ele me pediu que a levasse, se possível, para ele vê-la.
Como não resisto a pessoas que se abram para mim em quaisquer áreas artísticas, na semana seguinte o fiz.

Na faculdade haviam quatro auditórios de apresentação. Ele sempre ficava em um deles – por sinal, o mais modesto e menos usado – antes do início das aulas do período noturno. Terminadas as minhas aulas da tarde, parei na cantina para tomar um café. Havia quase um ano que eu tinha parado de fumar nessa época, e isso com certeza tinha mudado a minha vida.
Depois do café, usei um dos laboratórios de informática para revisar alguns estudos de JavaScript e depois fui para o auditório II.

Para adentrá-lo era preciso passar por todo pátio, e em seguida, por um corredor escuro com várias portas, aonde ficavam diversas salas de multimídia pouco usadas. A porta se encontrava fechada, porém, era possível notar a luz opaca acesa de seu interior, contrastando com a escuridão do corredor. Bati de leve duas vezes e abri. Na parede defronte estava passando uma apresentação sobre radiações provocadas pelos raios gama. Dei-lhe boa noite e pedi licença, gestos esses que ele retribuiu esbaforido e simpático, pedindo-me que entrasse.

Prossegui e encostei a porta, como estava antes. Fiz uma observação sobre a chuva fraca e incomoda que caia lá fora, e coloquei meus livros, cadernos e bolsa sobre a comprida mesa lateral.
Perguntei-lhe então se dispunha de tempo, pois eu havia trazido a obra da qual
conversávamos na semana anterior.
Ele se animou e disse que naquela noite não teria aulas à lecionar, e que era uma sorte eu tê-lo encontrado aquela hora.
Tirei a comprida folha do tubo, e delicadamente estendi-a sobre a mesa, colocando um caderno na parte superior e segurando a inferior com a ponta dos dedos. Ele veio então a minha direção, e se posicionou do lado vertical da mesa.
Meu tronco estava inclinado em demasia diante da mesa, e abro um parêntese importante aqui: Apesar de usar sempre os cabelos presos e óculos, nunca abandonei os decotes – moderados – e as unhas compridas com cores escuras. Fecha o parêntese.

Percebi que se encontrava um pouco intimidado com a situação, foi então que lhe chamei para ficar ao lado que eu estava, pois na vertical ele não iria ver com clareza.
Fez-se então na mesma posição que eu estava. Observava silenciosamente cada traço, e juntos apontávamos as partes em quais encontrávamos mais exatidão de sentimento ou técnica – comentários de leigos – claro.

A diferença da fisionomia de nossas mãos era uma boa síntese da nossa diferença de idade. Conforme nos distanciávamos e nos aproximávamos, a discussão ia ficando mais interessante e calorosa. Havia uma significativa diferença e altura entre nós, o que era engraçado. Sempre falei baixo, portanto, ele era obrigado a aproximar bem sua face da minha para ouvir-me bem.
Ambos já havíamos percebido que aquela discussão resultar-nos-ia em várias outros acontecimentos futuros.

Conforme nossas mãos acariciavam a folha, íamos nos sentindo mais próximos um do outro, até que elas se encontraram propositalmente diante da tela.
A dele estava por cima e acariciava meus dedos como se fossem eles parte da imagem. Dirigi meu olhar ao seu, e esboçamos dois sorrisos cômicos e vergonhosos, mas sorrisos complacentes; é...sorrisos complacentes.
Sua mão então seguiu o caminho natural: do meu antebraço deslizou aos meus cotovelos, seguindo para o braço. Estávamos de frente um para o outro, foi então que ele colocou a outra mão sobre meu outro braço e me puxou firmemente em direção ao seu corpo.

Nos olhamos delirantes e maliciosos, quando ele então me soltou e desceu as mãos para a minha cintura, apertando-a contra seu corpo, mais e mais.
Acariciei-lhe a face e passei uma das mãos que estava na sua nuca para dentro da gola de sua camisa, arranhando sem intenção suas costas, o que o fez estremecer e me beijar.

Sentir seus lábios quentes próximos aos meus foi uma sensação única, como se fosse meu primeiro beijo. É fato que já tive vários homens, porém aquela situação era diferente. Havia um quê de fetiche ali.

Enquanto nos perdíamos, eu cuidava de trazer minha mão ao seu peito, ele nunca abotoava os dois primeiros botões da camisa. Abri-lhe o terceiro e o quarto enquanto a outra mão puxava-o, sempre, para mais próximo que fosse possível.
Foi quando ele me levantou pela cintura e colocou-me em cima da mesa, erguendo minha blusa, e quase me deitando sobre a mesa, puxei sua camisa para fora da calça e desabotoei os últimos botões fechados.
Passei minha mão por toda extensão de seu peito a barriga; desejava-o ardentemente enquanto ele beijava meu pescoço, desejava como nunca desejei ninguém.

Diminuímos o ritmo na mesma freqüência, pois já havíamos tomado consciência do risco a qual estávamos nos expondo.
Nos comportamos então, e ele abaixou minha blusa; continuávamos a nos beijar enquanto eu fechava a sua camisa. Após isso, distanciou-se alguns centímetros e colocou ajeitou a blusa dentro da calça, como dantes.

Levantei-me da mesa, virei-me de costas para ele e enrolei a réplica, colocando-a em seguida no tubo.
Voltei-me para ele, e o encontrei sentado em uma das várias cadeiras defronte a tela do data-show. Sorriu-me sem dizer uma palavra, foi até o computador, desligou-o, pegou seu pendrive e as chaves do seu carro. Meus cadernos já estavam nos meus braços, juntamente da minha bolsa e o longo canudo.

Fitou-me por um instante, com aparente ternura e desejo, e disse-me ainda meio atordoado: “Vamos para outro lugar.”
E fomos.

Março de 2008

Alice


E então, ela me pediu para escrever sobre ela. Esse seria seu presente de aniversário.
Mas como eu faria isso? como eu escreveria sobre alguém que jamais tinha visto, uma pessoa que não sabia o verdadeiro nome, nem sequer aonde morava?
Porém acho que esse foi seu intuito, saber como eu a descrevera, como eu a imaginava.
O que eu falaria dela? do sorriso que eu imaginava ela ter? da sua risada discreta e elegante? sua classe singela e silenciosa, seu bom gosto e seus vícios, seus problemas pessoais e suas conquistas?
Eu não saberia fazer isso. Eu não poderia.
Teria eu que invadi-la para saber, teria que explorar a sua vida, argumentei sobre isso. Ela não aceitou, me confiara então o que seria sua discrição mais perfeita.
O que nos rodeava era o fantasioso, a ilusão, a não verdade: porque nada era mentira, nada era verdade. Entre nós, não havia mentiras, assim como, não havia verdades.
Tudo era fato, o que acontecera, acontecera. O que não acontecera, não acontecera.
Tinha a capacidade de absorver todo tipo de conhecimento, era isso que me fascinava naquela menina (ou seria homem? ou seria homossexual? ou nada disso?).
Ela sempre dizia que cultura inútil era com ela mesmo, só que eu discordava. Tudo me era útil, adorava ouvir suas histórias.
E então, comecei a traçar um perfil dela: como eu achava que ela se vestira, qual seu tom de voz, a cidade em que parecia morar, se tinha mãe, pai, namorado.. etc.
Tudo isso me ajudou em nada, ela era ilusória, eu não tinha como provar sua existência.
Então, falei de como imaginava seus cabelos castanhos claro caídos no ombro em fios retos, uma boca fina e discreta, e olhos fortes: sobre tudo, olhos penetrantes.
Imaginava-a meio Argentina, mais Argentina que brasileira. Entretanto, acreditava que ela possuíra olhos verdes, verdes claros de um tom opaco, assim como as francesas. Não a imaginava como uma mulher fatal. Não daquelas que você olha e sabe que é uma mulher fatal.
Ela era do tipo que esconde o jogo. Não dá abertura a ninguém, mas quando alguém tem a oportunidade de conhecê-la, não seria capaz de esquecê-la.
Ela encantava, seus assuntos eram sempre fabulosos, eu ficava a imaginar por muito tempo se ela havia cursado alguma faculdade, ou se ainda não tinha começado...
Parecia que vivera de tudo, que havia conhecido muitos lugares, tido muitos homens, e mesmo assim, não era velha, era jovem, moderna.
Para mim, sua vestimenta seria baseada em cores escuras ou apagadas, nas acasiões mais finas contrastavam com um batom vinho, e maquiagem bem leve: pouco contorno em volta dos olhos e um blush rosado leve, e adepta aos scarpins e chanel de salto agulha. No cotidiano, imaginava-a de jeans, tênis escuros, cabelos presos, óculos discreto, e blusas justas, mas não aparecendo alguma parte da barriga, ela não era disso.
Eu imaginava também que ela sempre carregara na bolsa livros e revistas, e quando não isso,na parte da manhã estava quase sempre com um jornal embaixo dos braços, indo ou voltando de algum lugar.
Me parecia o estilo “mochileira”, que gostava de conhecer novos lugares, até mesmo lugares simples ou perto, porém ela gostava de ir sozinha.
Nascera para viver sozinha, estava na cara. E era isso que eu mais amava nela: sua independência, ela se parecia comigo nisso.
Ela não era ligada a artes, não tinha hábito de escrever, e achava que não tinha talento para esse ofício.
Eu também acho, ela não tinha, ela era do tipo mais útil, inteligente para as coisas mais importantes, e não para ficar fazendo forminhas de argila ou tentando encontrar harmonia em cores.
Conversamos por muitos anos, lembro de quando ela sumiu da internet, mas não demorou muito a voltar, e sabia que eu jamais sairia desse mundo virtual, pois eu fazia de tudo nele.
Quando ela voltou, me disse que tinha tirado férias. Mas só depois fiquei sabendo que ela tinha ido para o interior, para largar as drogas e estudar (ela me dissera). Quando voltou, estava com dinheiro suficiente para sair do país novamente, não para morar, mas a passeio, acho que o que mais a encantava eram suas viagens; ela iria para uma pequena ilha, de 3.791 habitantes, a Ilha de Páscoa no Oceano Pacífico, pertencente ao Chile.
Eu nunca entendi como ela conseguia ir para alguns lugares tão estranhos sozinha, sem guia turístico ou coisa que o valha; mas ela ia, e sempre voltava com fotos maravilhosas: mas ela nunca estava nas fotos.
Nunca nos cobramos isso, de nos vermos ou algo do tipo, mas uma vez pedi uma foto sua, e ela me disse que preferia que eu não formasse uma imagem da sua pessoa pela sua posição social, sua aparência, sua atividade ocupacional, etc.
Eu até compreendi, e realmente, achei melhor que fosse assim: nos entendíamos muito, nos ajudávamos muito; talvez se nos conhecêssemos, tudo poderia mudar, ela era inconstante demais, e por não termos obrigatoriamente alguma relação entre si, éramos muito felizes com a nossa amizade.
E no fim, levarem se meses para que eu escrevesse o devido texto, ela sempre me perguntava como estava indo, e eu sempre dizendo que estava planejando.
Com o tempo, ela foi entrando cada vez menos na internet; dizia-se muito atarefada, e estudando muito. E nossas madrugadas de chat passaram a acontecer raramente: nenhum e-mail, nenhuma notícia.
E essa distância durou cerca de 7 ou 8 meses, até que um dia, eu abri meu e-mail e lá estava sua explicação de tudo: ela fora então para a América do Norte.
Conheceu as principais cidades dos Estados Unidos, conhecera a Ciudad de México, capital mexicana e se estabilizou no Canadá, mais precisamente na província de Quebec, a maior do país. Estava muito feliz, e disse que não poderia mais entrar por um bom tempo na internet, mas que nunca se esqueceria de mim; no e-mail, como de praxe me mandou fotos da sua temporada na América do Norte.
E anos e anos se passaram, e nunca mais tive notícias dela; a única coisa que eu sabia de mais concreto era seu provável nome: Alíce.
Em um dia qualquer, quando fui pegar as correspondências da caixa de correio, havia um cartão postal de Berlin.
No verso, a seguinte mensagem: "Não se precisa ver para sentir, assim como não se precisa tocar para amar. Eternamente, Alíce."
Fiquei sem palavras quando li aquelas palavras, traçadas em escrita fina de tinta preta forte; fui até o jardim, e me sentei no gramado.
Olhando para aquele cartão, minha vida toda se passou pelos meus olhos como um turbilhão, lembrei de várias pessoas que conheci e nunca mais tive notícias, lembrei de planos, lembrei de sonhos, lembrei de decepções, e chorei.
Fiquei algum tempo ali, sentada, quando o céu que já estava nublado, começou a despejar aquela chuva de verão. Fui para dentro de casa, sentei na frente da lareira com o meu notebook e escrevi por horas e horas, sem intuito, sem algum planejamento: apenas escrevi; salvei aquele documento, dormi, e no dia seguinte comecei mais uma rotina normal.
Alguns dias depois, resolvi ler o que havia escrito, e estava ali, aquele texto era o que Alíce tinha me pedido há anos atrás, e eu nunca havia terminado; precisou de anos para que ele surgisse, sem propósito, sem meias palavras, apenas quem ela era em essência.
Mostrei para alguns amigos meu, sem explicar o contexto, e foi imensamente elogiado por todos, até que um de meus amigos, que lidava com poesia, selecionou-o para sair em uma coletânea intitulada “Novos Contos Brasileiros”.
A nossa estória foi assim, incerta, não prevista, e intensa.
Em vida, não soube se Alíce chegou a ler aquele conto. Nunca mais tive notícias dela, mas nunca a esqueci.

Dezembro de 2007

KYRIE

Me lembro muito bem daquela tarde fria de julho. Estava todos de férias da faculdade, e nos meus dias de folga aproveitava para ir ao cinema ou à biblioteca. Mesmo conhecendo tantas pessoas, eu preferia passar minhas folgas sozinhas; me cansava conviver com tanta gente todos os dias.
Sempre preferi procurar os títulos de meu interesse ao invés de pedi-los para os bibliotecários, o que os tornavam mais simpáticos comigo; a verdade era que eu sempre descobria coisas interessantes assim.Entrei na enorme sala, do andar superior, e perguntei para a moça sentada de frente ao computador qual era a estante dos autores de sobrenome começados em S.
Ela me apontou o fim do último corredor e concluiu com: “A esquerda”. Por coincidência seu nome era Samanta, e aparentava um pouco mais que minha idade – eu estava com 21 na época.

Tirei meus óculos para limpar as lentes meio embasadas, enquanto observava com a visão deturpada aquela variedade de pessoas ensimesmadas, concentradas em suas atividades.
Na mesa que Samanta revezava com outros bibliotecários, havia algumas pilhas de livros e o primeiro que avistei me trouxe boas lembranças. O título era Melancia, da Marian Keyes, e isso me fez sentir saudades da minha mãe, e me prometi que no próximo dia de folga viajaria para a cidade que morei muitos anos, para revê-la.Segui em direção a coluna indicada e comecei a circular entre aqueles vários exemplares. Ao abaixar para pegar o que então procurava – uma antiga edição de Simulacros, do Sergio Sant’Anna, que eu havia lido na adolescência – um homem que eu nem havia percebido ao meu lado também se abaixou.

Quando fui me desculpar de forma simplória pelo equivoco, ele se levantou e me olhou fundo nos olhos. Por um raio de minuto me passou pela cabeça vários anos, como flashes confusos que disputavam a atenção da minha mente confusa. Tudo parou quando sem rodeios, esse homem que me olhava com seus pequenos olhos castanhos e meigos, passou uma de suas mãos pela minha nuca e aproximou seu rosto do meu, tocando seus lábio nos meus, com um pequeno estalo que só nós dois escutamos.

Sem me dizer uma só palavra, levantamos e ele me abraçou delicadamente, encostando minha cabeça no seu peito. Enquanto aqueles longos braços me envolviam, senti o cheiro de xampu que vinha do seu cabelo, suas mãos nas minhas costas pareciam tocar uma frágil escultura, toque de apreciador, acostumado à tantas delas.
Quando nos desprendemos cautelosamente, os olhares voltaram a se encontrar, e dois singelos sorrisos floresceram de nossos lábios. Me sentia leve e fraca, e com o medo de me expressar errado, disse baixo: Por onde andavas.... Ele então recolheu suas mãos nos bolsos da calça jeans, e deixando-nos levar pelo ar frio da biblioteca, respondeu no mesmo tom: A sua espera.
Tirou meus óculos pequenos, despercebidos à distancia pela sua simplicidade proposital, e fechou as pálpebras de meus olhos com suas mãos macias; de olhos fechados então, senti colocá-los em minhas mãos, e com a outra, aproximava meu rosto de seus lábios, que delicadamente me disseram: Eu sempre estive aqui. À sua espera. E na hora certa, não iremos mais nos separar. Foi então a última frase que ouvi sair de sua boca, seguida de um tenro beijo no meu rosto.
Quando senti distanciar-se, olhei para trás e ele seguia em passos rijos rumo à escada.
Sentei-me desnorteada na mesa ao lado da estante, e as lagrimas tímidas escorriam de meus olhos. Decidi então voltar para casa, sem pensar em nenhuma alternativa que pudesse ser mais agradável.
Desci consternada os mesmos degraus que há poucos minutos ele havia descido e segui rumo a avenida.

O trânsito àquela hora do dia era intenso, e numa distração de um motorista jovem, ao desviar de um mendigo que atravessava trôpego aquela rua extensa, senti o impacto de uma batida, que não só resultou na queda dos meus óculos, mas como também da minha alma.

Meados de 2007

Passadiço

Havia tido um dia péssimo no trabalho - mas isso era normal, raro os dias que eram tranqüilos.
Ao sair da fábrica, pegou o carro no estacionamento e seguiu para um barzinho aonde costumava ver o futebol de domingo com os amigos e tomar cerveja. Não era domingo, e não havia amigos lá, pelo contrário e era Quarta-Feira.
Quarta-feira é o ápice da semana, o dia mais frustrado. Sentou-se no balcão, e pediu uma vodka com soda; não sabia ao certo porque tinha parado lá, nessas alturas do campeonato, ele só queria ir para casa, encontrar a esposa e se afundar no sofá.
O fato é que tinha uma filha pequena, de quatro anos, e por mais que - claro - fosse sua paixão (junto da esposa), hoje não estava com paciência para ouvir-lhe as suplicas pedindo que fosse brincar com ela.
Tomou o seu drinque, pediu outro e ficou observando as mulheres baixas que entravam no ambiente. Loiras, ruivas, altas, gordas, várias. Algumas aparentemente deprimidas, a busca de clientes. Outras, mais velhas e sorridentes, com ar de quem já viu de tudo, e que a vida não lhe passava de brincadeira, uma brincadeira sombria e maldosa, mas uma brincadeira da qual elas gostavam de dar boas risadas no fim do dia.
Resolveu ir a uma zona que conhecia; não gostava de chamar de zona, pois as meninas eram muito agradáveis, e sempre o tratava bem (independente de interesse ou dinheiro). Chegando lá, como ainda não era nem sete da noite, só entrou porque Margô era sua amiga.
Margô era a dona da casa, tinha aberto há 20 anos já, e beirava os 40 de idade; era uma mulher simpática e atraente, mais madura, mas que não atendia clientes, era a anfitriã do espaço.
Quando o viu, percebeu que ele não estava muito bem. Chamou-o para o andar de cima, ofereceu-lhe uísque com guaraná e sentaram-se no grande e confortável sofá do quarto dela.
Perguntou então o que se passava com ele, que estava visivelmente abatido e desanimado; cansaço, tédio, rotina. Era isso que tomava conta dele. O esforço em vão no serviço, trabalhava mais do que era da sua obrigação, e não fazia isso forçado, era por vontade própria. Sentia a necessidade de ser competente naquilo que fazia e de fato o era.
Portanto tudo tomava proporções cada vez maiores, e no fim do dia sentia uma profunda depressão, tinha vontade de chorar.
Margô abraçou-o e deitou sua cabeça no seu colo, e ficou a acariciar-lhe os cabelos. Gabriel sentia uma profunda vontade de chorar, e não tinha amigos que o deixassem a vontade pra isso, foi quando ouvindo os conselhos de Margô, desabou em um choro continuo e silencioso.
Antes mesmo de casar ele começara a frequentar a casa, então foi tornando-se amigo dela, pois muitas vezes ia apenas para beber alguma coisa e ver as streapers nos mastros, não fazia questão de passar a noite com elas de fato. E sempre foi um cliente bom, equilibrado, que de certa forma, quando mais novo, não deixava acontecer problemas no lugar; sabe-se que sempre tem os engraçadinhos forçando as meninas que não fazem programa (boa parte das streapers, por exemplo), a fazer-lhe carícias e quando bêbados, na marra mesmo.
Ele odiava essa falta de respeito que certos homens tinham com elas, era profissionais, e se quisesse uma diversão maior, que fossem falar com as prostitutas. Alto, corpulento e de face carrancuda, os outros clientes não batiam de frente com ele; Margô era grata por isso, era bom ter rapazes como ele na casa em dias de mais movimentos.
Mas Gabriel casou-se cedo, e logo deixou de frequentar como antes, ia poucas vezes então.
Olhou para o rosto de Margô e deu-lhe um sorriso comovido, de aparente fragilidade. Via no rosto da amiga uma imensa ternura, amiga qual já havia passado a noite, mas não a via hoje como uma mulher para tal. Era mais que isso, era amiga. Nunca teve muitas amigas, antes de casar até algumas, mas hoje não tinha nenhuma; E sabe-se como são os homens, há certos tipos de conversas, de conselhos, de situações, que eles não estão aptos a compreender.
Olhou no relógio e já tinha passado das 9. Sentiu cochilar no colo da amiga, e quando despertou vendo a hora, levantou-se calmamente e disse que precisava partir.
Abraçou-a, e sentiu um imenso pesar por ter de ir embora. Era bom estar ali com ela. Sentado, só ficar ao seu lado. Não precisa lhe dizer muitas coisas para que ela o compreendesse completamente, ela nunca negava atenção a ele, sempre como uma irmã mais velha.
Também adorava sua presença, e gostava quando ele a visitava, principalmente fora de movimento, pois podiam conversar sem preocupação. Ou então, apenas ficarem calados juntos.
Gabriel amava sua mulher, não tinha dúvida disso. Porém, em seus quase 9 anos de casamento, sentia-se pesaroso por ter se casado cedo.
Clarice era uma mulher maravilhosa, sempre terna e companheira. Trabalhava fora também, porque queria, e sempre dava conta da organização da casa e da vida da criança. Era um matrimonio bem realizado, mas Gabriel carregava um peso na consciência por no começo do casamento ter lhe traído tantas vezes. Hoje não sentia mais necessidade disso, preferia ficar no ócio com Margô às vezes a passar com alguma das meninas da casa. Sexo era bom, e ele gostava claro, mas Clarice não deixava nada a desejar, então não procurava mais por isso fora. O motivo de ter feito-o com frequência no começo do casamento, era puro complexo de inferioridade. Sentia-se inferior no quesito "beleza" em relação à Clarice. Ela, sempre apresentável, social e elegante, chamava a atenção. Sentia-se inseguro com isso, hoje, não mais. De todas as garotas que havia saído nesses 9 anos, pensou algumas vezes em se separar para ficar com uma ou outra (isso antes de sua filha nascer); mas acreditava que não valia a pena deixar uma vida toda que estava por vir devido à insegurança. Problemas por problemas, havia de tê-los com qualquer uma das garotas.
Deu um beijo no rosto de Margô, e agradeceu-lhe mais uma vez por tudo, e seguiu para fora da casa.Entrou no carro, pegou a avenida, e foi embora.
Chegando em casa, sua filha já estava dormindo, e Clarice estava de pijama sentada na sala, com o notebook aberto no colo e uma xícara de café na mesa de centro.
Ele pediu-lhe desculpa por ter demorado, sem dar mais justificativas. Ela disse que não tinha problema, e que se quisesse jantar tinha pedido uma pizza há algumas horas e estava no forno.
Gabriel aproximou-se dela, deu-lhe um beijo de quem aparenta cansaço e foi para a cozinha pensativo.
Considerava-se um homem com muita sorte, por ter uma esposa tão maravilhosa. Ela não pegava no pé, não ligava se ele saísse com os amigos para beber ou jogar baralho, desde que não faltasse com suas obrigações com a casa e com o bebê. Tempos atrás chegou até a desconfiar, se Clarice não tinha um amante ou coisa do tipo, pois realmente dava-lhe bastante liberdade.
Com o tempo essa idéia abrandou, pois não tinha motivos além para desconfiar de nada. O fato é que ela, era uma mulher apaixonada pela vida. Ainda nova, com seus 30 anos, trabalhava pouco mas fazia o que gostava, passava boa parte da noite estudando ou lendo, acordava relativamente cedo e dava conta de tudo, porque fazia muitas coisas, mas em doses pequenas.
Também tinha seus casinhos extraconjugais, mas nada com importância, não se preocupava com isso, também amava Gabriel e não sentia o peso dos anos. Casara-se porque queria, porque ele era um bom companheiro.
Ele não sabia porque se dedicava tanto ao serviço, sendo que não passavam nenhum tipo de aperto financeiro, e nem precisava fazer tanto esforço como fazia, mas no fundo ele se alienava no mesmo. Cuidava de um setor importante, lidava com a vida das pessoas, e isso o agradava, apesar do cansaço.

Ficaram casados por 15 anos, quando sua filha tinha 10 anos, se separaram e ela foi morar com o pai.
A separação foi pacífica, e ela fora porque queria, mas Clarice estava sempre presente, a buscava para levar à escola, participava das reuniões, dava-lhe conselhos (mesmo que ainda muito jovem a garota), e gostava mais ainda da independência que conseguia conciliar com aquilo tudo.
Gabriel sabia que na verdade, eram só amigos, e achavam melhor cada um morar na sua respectiva casa. Não queria sentir peso na consciência a sair com outras mulheres, era muito grato a todo apoio que Clarice tinha dado em sua vida, na sua carreira, nos seus planos. Sempre o apoiava e dava-lhe segurança estar por perto.
Por tanto, sempre esteve. Ela não se casou novamente porque não queria e ele, porque não gostava da idéia de dar uma madastra para sua filha.
A intensidade que unia os três esteve sempre presente; saiam em passeios familiares, dividiam os gastos com a menina, entravam em acordo, e até viajaram juntos algumas vezes. Tinham completa intimidade juntos, mas não havia mais interesse sexual entre ambos, justamente por essa pureza que permeava o relacionamento.
No começo, os pais de Clarice acharam abominável a idéia de a filha não morar com a mãe, mas viam que realmente, não teria grandes problemas pois Gabriel era um homem correto e ajuizado.Quando queria passar a noite fora, deixava-a na casa de Clarice; isso acontecia pouco, ela não ligava.
Eram duas pessoas bem resolvidas consigo mesmas, e com o tempo ele passou a dar menos importância ao trabalho. Não se tornou um mal empregado, mas sim na medida, pois agora a prioridade era a filha.
Essas mudanças fizeram bem para ele, agora sentia a calma dos anos passar, o trem correr certo nos trilhos, sem nenhum perigo de errar o trajeto.

Meados de 2008